B. Pretende-se
provocar, convocar, penetrando no vazio.
C. Como
fazê-lo mexer-se, sair de si? Não com um traço grosso de grafite.
Não com traçados aleatórios, a querer imitar a natureza. Quanto
mais fina e imperceptível, mais a linha levará consigo uma força.
Quanto mais geométrica for a linha, mais a força se adensará e se
intensificará. E, com eficácia e precisão, entrará no vazio.
D. Assim,
de certo modo, cada linha é uma fenda do vazio. Duas rectas
paralelas, com uma sombreada, formam um tubo que se introduz
rapidamente no branco. Linhas paralelas, convergentes, cruzadas,
perpendiculares, ângulos rápidos que se multiplicam. Andaimes e
armações.
E. Triângulos
em leque formam planos de ar, imateriais, que giram por cima do
branco. O desenho é cosa
mentale.
F. Da
massa branca amorfa afloram ecos de formas, geométricas ou não,
traçados de mesas, contornos indefinidos. Espicaça-se o caos, que
se move.
G. Às
vezes, basta uma recta simples para que a fenda se cubra de pequenos
traços, erva ou pêlos nus do fim do mundo. Arbustos.
H. O
branco é infinito, sem dimensões. A linha é finita mas ilimitada,
orienta-se a si mesma, pela velocidade que a dispara. E a sua
determinação é tão marcante que induz o branco a formar embriões
de espaços e dimensões, esquiços que se sobrepõem.
I. A
questão é: como acordar o vazio para que ele se mova de modo a que
o desenho seja o desenho e o vazio não deixe de ser o vazio? De modo
a que o branco seja o branco daquele traço, e o traço, o traço
daquele branco? Não, como em tantos casos, fazendo da matéria
informe, a forma.
J. Ao
que está no suporte, pode chamar-se vazio, se bem que este não seja
idêntico ao nada. Chama-se vazio porque não tem nenhuma
determinação nem é susceptível de qualificações. É informe e
indeterminado. Mas não é o nada.
K. Nos
primeiros desenhos, os traços-fenda não existem por si, não
constroem objectos, apenas estruturas, no melhor dos casos. Valem por
referência ao grande vazio que os envolve. Nos últimos desenhos, as
redes de volumes e sombras compõem blocos de coisas, que já não se
referem ao branco em redor, mas apenas a si mesmas.
L. As
variações do traço, ora ténue e comprido ora escuro e curto, ou
comprido-longo e curto-breve, multiplicam a linha do interior.
Diversificam-se velocidades de uma linha para outra e dentro de cada
uma. As linhas tornam-se vectores e viajam como bólides, em
acelerações descontínuas.
M. Podem
nascer perspectivas aéreas, sobrevoando o suporte, ou definindo
vagamente a sua superfície incerta. Um horizonte por detrás da
primeira linha de horizonte e outro, mais longe ainda.
N.
Tudo se faz, tudo acontece – as linhas, as sombras e as coisas, a
velocidade e a lentidão, as multiplicidades densas e a vastidão, a
provocação do informe e o engendramento das formas – por meio de
operações.
O. A
linha dilatou-se em fenda, a fenda estendeu-se em profundidade, a
profundidade enrodilhou-se em massa, a massa dividiu-se em cilindros,
tubos, pirâmides, superfícies espessas que se formaram, se
aglomeraram e se distenderam, deslizando sobre uma linha ou sobre um
plano. Uma coisa surgiu, violentamente. Um outro desenho. Um outro
regime de concentração de forças.
P. A
profundidade abre-se e fica à superfície (que não se vê). Ou
cava-se num dentro que só existe naquelas máquinas cheias de
sombras, planando sobre o vazio. Este não adquiriu forma, matéria
ou interior. Impalpável textura. Gerou e passou. Breve.
Q. As
coisas nascem do caos impelidas por forças. As velocidades dos
jactos contrastam com o vagar das massas deslocando-se, quase
imóveis. Definem-se com nitidez, aparecem em planos polidos ou
vidrados, sem excrescências, obscuridades ou novelos esfumados.
Blocos de gelo. As sombras lançam-se e espraiam-se recortando-se no
espaço, sem emaranhamentos ou confusões. Saindo de uma recta, mas
delimitadas, deixam do outro lado a transparência macia dos
espelhos.
R. As
sombras emergem como fumos e explodem ao longo de arestas. Ligam-se
ao fundo, de onde saem e que já lá não está. Nunca esteve.
S. As
sombras não criam só as dobras e o dentro. Ao rebentar para o
exterior da linha, procuram talvez um espaço. O fora é ilimitado e,
contudo, esgota-se logo, a pouca distância dos fumos. Como um eco do
vazio branco.
T. As
sombras delineiam formas tubulares que se individualizam em
sobreposição, imbricando-se e escondendo-se umas atrás das outras.
Esboçam-se perspectivas e fundos apertados, onde se estreitam
coisas, às vezes quase a soltarem-se.
U. Quando
o movimento não indica a saída, um grande arco rasga (e cria) o
espaço, muito além das sombras acumuladas. Uma outra perspectiva,
simples, livre, vasta, atravessa o desenho. Para lá da violência
contida das sombras e fundos abraçados. Tempo longo de gestação,
tempo breve de erupção.
V.
W.
X.
Y. Sem
que se dê por isso, desenha-se aqui, incessantemente, a génese do
desenho.
Z.
José Gil
Um
arbusto é um arbusto
Que
forças tão violentas e tão contidas encontramos nós nos desenhos
de Marta Caldas?
Os
desenhos são sempre preparatórios mesmo quando não são. De labor
subtil preservam-se na sua quase invisibilidade questionando e
enfrentando o terror do demasiado visível. Minuciosos, elevam-se da
terra, imobilizam-se no instante, suspendem-se na parede. A luz é um
problema. Espalha-se com a imprevisibilidade dos dias e dos instantes
e ora esconde branca o branco alabastro sobre o branco vegetal e
mineral, ora o mostra na imperceptibilidade concisa da grafite. De
vez em quando abandonam-se à vida, e, insustentáveis, ficam num
estado de instantaneidade que os e nos deixa maturare.
Investigamos
os limites das linhas, que se alongam em todas as direcções,
torcem, bifurcam, cruzam ou param sozinhas subitamente. Linhas em
queda, combinações de variabilidade que mal se contêm no papel.
Para onde olhar? Para todo o lado. Numa vertigem cega de tanto ver.
Para todo o lado porque em todo o lado existem arbustos. Às vezes
num céu grumoso de branco parecem ver-se nuvens e depois levando o
olhar mais longe e para cima são ainda arbustos e linhas. Ou só
vazio, vazio produzido pelo nada saído do caos da precisão
obsessiva da força da linha. Força que insiste em perder-se e
dissolver-se na luz, sair dos limites, corroer os contornos,
separar-se e afrontar as fímbrias.
Questiona-se
radicalmente o próximo e o longínquo, a continuidade do fio sem
cessar quebrado. As linhas percorrem o fio da navalha, alinham-se
pelo fio de prumo, cristalizam-se num tempo impossível, numa
estabilidade mínima. As linhas fogem, são transparentes,
inexistentes. Mudam de escala dentro de uma micro escala controlada
pelo gesso fino. Ao mesmo tempo as duas coisas e uma terceira. Estes
desenhos são um combate incerto. Não mais o par ou o ímpar, fora
das dicotomias, não deixam de se questionar a si mesmos.
O
espaço é liso, corta-se onde se quiser. Sem direito nem avesso. Na
verdade, as linhas não vão de um ponto ao outro. São meios,
processos, e os turbilhões podem surgir num momento qualquer. No
liso do vazio um espaço de experimentação concentra uma
espontaneidade rítmica que se esquiva “entre
as suas próprias partes, entre as forças que subjugam ou que são
subjugadas, entre as potências que exprimem essas relações de
forças. (…) Todos os gestos são defesas ou mesmo ataques,
esquivas, bloqueios, antecipações de um golpe que nem sempre vemos
chegar ou de um inimigo que nem sempre chegamos a identificar”
(Deleuze).
O
desenho é um “combate-entre”, não é um combate contra. Procura
as forças e as tensões e agencia-as, num devir, com os materiais,
os pigmentos, o tempo, o ar, os ruídos. Desenha-se com uma
“idiossincrasia de forças” que interrompe o curso natural dos
dias e das coisas quotidianas.
Desenha-se
para nada querer dizer. O novo que chega do vazio e do caos está em
toda a parte. No traço esculpido, no gesto mais ínfimo. Nestes
desenhos precisamos de atenção máxima. Obrigando-nos a “desenhar
virtualmente”.
Porque há uma imensa diferença entre ver uma coisa sem lápis na
mão e vê-la desenhando, diria Valéry. A grafite é aqui o olho e o
gesto, o suporte é o ar e o espaço entre, e ainda falta um kairos
de luz.
A
linha que escapa em mancha e se espalha, ténue, no pó da grafite,
abre passagens no abismo, lança-se curva a curva a partir da dupla
cruz, para a direita. Adensa-se na penumbra, divide-se no branco,
divide-o e concentra-se na confusão precisa do molde, evitando a
desintegração total. O desenho suspenso tem todos os desenhos. Sem
centro, desfaz-se em vertigem imperceptível, num dentro-fora.
Perdidas
as formas, e à medida que aumentam as conexões, o molde muda de
dimensão e de natureza, seis são os estames à esquerda… as
linhas habituais, já vistas, são quebradas por uma estranheza
improvável. Desenha-se porque há um problema, um combate e uma
invenção que lhe está associada. Desenhar é uma necessidade
vital, única, “mesmo se não é a única”, que se estende num
tempo infinito e se “vê” num espaço interior.
Já
antes tínhamos visto (em doublet.,
2013, ii
e cimo agrícola,
2015) que os desenhos de M. C.
são desiguais porque problematizam a unidade perdida da medida que
não existe. Neles coexistem elementos, multiplicidades que abrem sem
cessar o vazio e fazem proliferar a sombra. Ao contrário dos
arbustos que já não vemos, que crescem em lugar nenhum e estão em
todo o lado, invisíveis e anódinos, não podemos perder de vista os
desenhos de Marta Caldas.
Ana
Godinho