quarta-feira, 18 de julho de 2018




stills do vídeo assembleia
2019
(apresentado na ZDB, Lisboa,
aquando do lançamento do livro assembleia,
editado pela Douda Correria)


































a r b u s t o



marta caldas
curadoria de ana godinho

snba, lisboa
05/07 - 28/07  2018






Texturas breves do vazio (abecedário para uma exposição)


A.   Primeiro, trata-se o suporte, preparando as linhas e o vazio. O traço, finíssimo, tenderá a desaparecer no branco do papel.

B.   Pretende-se provocar, convocar, penetrando no vazio.

C.  Como fazê-lo mexer-se, sair de si? Não com um traço grosso de grafite. Não com traçados aleatórios, a querer imitar a natureza. Quanto mais fina e imperceptível, mais a linha levará consigo uma força. Quanto mais geométrica for a linha, mais a força se adensará e se intensificará. E, com eficácia e precisão, entrará no vazio.

D.   Assim, de certo modo, cada linha é uma fenda do vazio. Duas rectas paralelas, com uma sombreada, formam um tubo que se introduz rapidamente no branco. Linhas paralelas, convergentes, cruzadas, perpendiculares, ângulos rápidos que se multiplicam. Andaimes e armações.

E.   Triângulos em leque formam planos de ar, imateriais, que giram por cima do branco. O desenho é cosa mentale.

F.   Da massa branca amorfa afloram ecos de formas, geométricas ou não, traçados de mesas, contornos indefinidos. Espicaça-se o caos, que se move.

G.  Às vezes, basta uma recta simples para que a fenda se cubra de pequenos traços, erva ou pêlos nus do fim do mundo. Arbustos.

H.  O branco é infinito, sem dimensões. A linha é finita mas ilimitada, orienta-se a si mesma, pela velocidade que a dispara. E a sua determinação é tão marcante que induz o branco a formar embriões de espaços e dimensões, esquiços que se sobrepõem.

I.    A questão é: como acordar o vazio para que ele se mova de modo a que o desenho seja o desenho e o vazio não deixe de ser o vazio? De modo a que o branco seja o branco daquele traço, e o traço, o traço daquele branco? Não, como em tantos casos, fazendo da matéria informe, a forma.

J.   Ao que está no suporte, pode chamar-se vazio, se bem que este não seja idêntico ao nada. Chama-se vazio porque não tem nenhuma determinação nem é susceptível de qualificações. É informe e indeterminado. Mas não é o nada.

K.  Nos primeiros desenhos, os traços-fenda não existem por si, não constroem objectos, apenas estruturas, no melhor dos casos. Valem por referência ao grande vazio que os envolve. Nos últimos desenhos, as redes de volumes e sombras compõem blocos de coisas, que já não se referem ao branco em redor, mas apenas a si mesmas.

L.  As variações do traço, ora ténue e comprido ora escuro e curto, ou comprido-longo e curto-breve, multiplicam a linha do interior. Diversificam-se velocidades de uma linha para outra e dentro de cada uma. As linhas tornam-se vectores e viajam como bólides, em acelerações descontínuas.

M.   Podem nascer perspectivas aéreas, sobrevoando o suporte, ou definindo vagamente a sua superfície incerta. Um horizonte por detrás da primeira linha de horizonte e outro, mais longe ainda.

N.   Tudo se faz, tudo acontece – as linhas, as sombras e as coisas, a velocidade e a lentidão, as multiplicidades densas e a vastidão, a provocação do informe e o engendramento das formas – por meio de operações.

O.  A linha dilatou-se em fenda, a fenda estendeu-se em profundidade, a profundidade enrodilhou-se em massa, a massa dividiu-se em cilindros, tubos, pirâmides, superfícies espessas que se formaram, se aglomeraram e se distenderam, deslizando sobre uma linha ou sobre um plano. Uma coisa surgiu, violentamente. Um outro desenho. Um outro regime de concentração de forças.

P.   A profundidade abre-se e fica à superfície (que não se vê). Ou cava-se num dentro que só existe naquelas máquinas cheias de sombras, planando sobre o vazio. Este não adquiriu forma, matéria ou interior. Impalpável textura. Gerou e passou. Breve.

Q.   As coisas nascem do caos impelidas por forças. As velocidades dos jactos contrastam com o vagar das massas deslocando-se, quase imóveis. Definem-se com nitidez, aparecem em planos polidos ou vidrados, sem excrescências, obscuridades ou novelos esfumados. Blocos de gelo. As sombras lançam-se e espraiam-se recortando-se no espaço, sem emaranhamentos ou confusões. Saindo de uma recta, mas delimitadas, deixam do outro lado a transparência macia dos espelhos.

R.   As sombras emergem como fumos e explodem ao longo de arestas. Ligam-se ao fundo, de onde saem e que já lá não está. Nunca esteve.

S.   As sombras não criam só as dobras e o dentro. Ao rebentar para o exterior da linha, procuram talvez um espaço. O fora é ilimitado e, contudo, esgota-se logo, a pouca distância dos fumos. Como um eco do vazio branco.

T.   As sombras delineiam formas tubulares que se individualizam em sobreposição, imbricando-se e escondendo-se umas atrás das outras. Esboçam-se perspectivas e fundos apertados, onde se estreitam coisas, às vezes quase a soltarem-se.

U.   Quando o movimento não indica a saída, um grande arco rasga (e cria) o espaço, muito além das sombras acumuladas. Uma outra perspectiva, simples, livre, vasta, atravessa o desenho. Para lá da violência contida das sombras e fundos abraçados. Tempo longo de gestação, tempo breve de erupção.

V.
W.
X.
Y.   Sem que se dê por isso, desenha-se aqui, incessantemente, a génese do desenho.
Z.
José Gil




Um arbusto é um arbusto

Que forças tão violentas e tão contidas encontramos nós nos desenhos de Marta Caldas?
Os desenhos são sempre preparatórios mesmo quando não são. De labor subtil preservam-se na sua quase invisibilidade questionando e enfrentando o terror do demasiado visível. Minuciosos, elevam-se da terra, imobilizam-se no instante, suspendem-se na parede. A luz é um problema. Espalha-se com a imprevisibilidade dos dias e dos instantes e ora esconde branca o branco alabastro sobre o branco vegetal e mineral, ora o mostra na imperceptibilidade concisa da grafite. De vez em quando abandonam-se à vida, e, insustentáveis, ficam num estado de instantaneidade que os e nos deixa maturare.
Investigamos os limites das linhas, que se alongam em todas as direcções, torcem, bifurcam, cruzam ou param sozinhas subitamente. Linhas em queda, combinações de variabilidade que mal se contêm no papel. Para onde olhar? Para todo o lado. Numa vertigem cega de tanto ver. Para todo o lado porque em todo o lado existem arbustos. Às vezes num céu grumoso de branco parecem ver-se nuvens e depois levando o olhar mais longe e para cima são ainda arbustos e linhas. Ou só vazio, vazio produzido pelo nada saído do caos da precisão obsessiva da força da linha. Força que insiste em perder-se e dissolver-se na luz, sair dos limites, corroer os contornos, separar-se e afrontar as fímbrias.
Questiona-se radicalmente o próximo e o longínquo, a continuidade do fio sem cessar quebrado. As linhas percorrem o fio da navalha, alinham-se pelo fio de prumo, cristalizam-se num tempo impossível, numa estabilidade mínima. As linhas fogem, são transparentes, inexistentes. Mudam de escala dentro de uma micro escala controlada pelo gesso fino. Ao mesmo tempo as duas coisas e uma terceira. Estes desenhos são um combate incerto. Não mais o par ou o ímpar, fora das dicotomias, não deixam de se questionar a si mesmos.
O espaço é liso, corta-se onde se quiser. Sem direito nem avesso. Na verdade, as linhas não vão de um ponto ao outro. São meios, processos, e os turbilhões podem surgir num momento qualquer. No liso do vazio um espaço de experimentação concentra uma espontaneidade rítmica que se esquiva “entre as suas próprias partes, entre as forças que subjugam ou que são subjugadas, entre as potências que exprimem essas relações de forças. (…) Todos os gestos são defesas ou mesmo ataques, esquivas, bloqueios, antecipações de um golpe que nem sempre vemos chegar ou de um inimigo que nem sempre chegamos a identificar” (Deleuze).
O desenho é um “combate-entre”, não é um combate contra. Procura as forças e as tensões e agencia-as, num devir, com os materiais, os pigmentos, o tempo, o ar, os ruídos. Desenha-se com uma “idiossincrasia de forças” que interrompe o curso natural dos dias e das coisas quotidianas.

Desenha-se para nada querer dizer. O novo que chega do vazio e do caos está em toda a parte. No traço esculpido, no gesto mais ínfimo. Nestes desenhos precisamos de atenção máxima. Obrigando-nos a “desenhar virtualmente”. Porque há uma imensa diferença entre ver uma coisa sem lápis na mão e vê-la desenhando, diria Valéry. A grafite é aqui o olho e o gesto, o suporte é o ar e o espaço entre, e ainda falta um kairos de luz.
A linha que escapa em mancha e se espalha, ténue, no pó da grafite, abre passagens no abismo, lança-se curva a curva a partir da dupla cruz, para a direita. Adensa-se na penumbra, divide-se no branco, divide-o e concentra-se na confusão precisa do molde, evitando a desintegração total. O desenho suspenso tem todos os desenhos. Sem centro, desfaz-se em vertigem imperceptível, num dentro-fora.
Perdidas as formas, e à medida que aumentam as conexões, o molde muda de dimensão e de natureza, seis são os estames à esquerda… as linhas habituais, já vistas, são quebradas por uma estranheza improvável. Desenha-se porque há um problema, um combate e uma invenção que lhe está associada. Desenhar é uma necessidade vital, única, “mesmo se não é a única”, que se estende num tempo infinito e se “vê” num espaço interior.
Já antes tínhamos visto (em doublet., 2013, ii e cimo agrícola, 2015) que os desenhos de M. C. são desiguais porque problematizam a unidade perdida da medida que não existe. Neles coexistem elementos, multiplicidades que abrem sem cessar o vazio e fazem proliferar a sombra. Ao contrário dos arbustos que já não vemos, que crescem em lugar nenhum e estão em todo o lado, invisíveis e anódinos, não podemos perder de vista os desenhos de Marta Caldas.

Ana Godinho